O fidalgo semiótico

Por ser magro e comprido, e olhar o horizonte com um ar de saudade, os amigos o apelidaram de Dom Quixote. Seu pai comprou um carro, um DKW Wemag, a Pequena Maravilha. Depois de servir a família nos afazeres diurnos o carro tornava-se o veículo das rondas líricas dos poetas da Geração 59, na maioria filhos de famílias menos abastardas. Aquele automóvel, amado instrumento de grandes jornadas noite adentro, foi apelidado, naturalmente, de Rocinante (outra máquina querida como Rocinante foi o carro do pai de Breno Mattos, um Ford 47 que, quando funcionava, tornava-se um tapete mágico a nos conduzir á barraca de Merêncio, no Porto do Capim, e outros templos do prazer perdidos no passado. Um dia, por esquecimento dos seus líricos usuários, nasceu um pé de carambola no banco de traz, rompeu o teto e frutificou docemente.)

Dom Quixote, ou melhor, Otávio Pereira Sitônio Pinto, nos presenteia com um precioso livro intitulado, semioticamente, Caminhos de Toboso (Páginas Paraibanas - UEPB). Para quem não conhece Otávio Sitônio, o livro será apenas uma festa de beleza pura, poesia das grandes. Mas para quem já privou do seu convívio, o livro é também uma festa, mas festa no sentido da celebração de uma geração que, embora vivendo entre o mar e o rochedo, tem ultrapassado heroicamente as adversidades, e saudado os momentos de rara, mas intensa, felicidade. Caminhos de Toboso é uma auto-festa, uma biografia semiótica, em louvor a meio século do prazer da palavra, da história, do soneto, dos amigos, da cidade de, como diz Jomar Souto, amar-elos, isto é, além das acácias e paus d’arcos amarelos, amar as ligações, os elos entre as pessoas, amar o outro.

Lembro do verão de 58, quando chegava ao Liceu às 6h45 da manhã e indefectivelmente encontrava nosso fidalgo para uma prosa antes da aula. Num belo dia ele disse: Pontualíssimo. - Quem, eu?, perguntei. - Não, Raul - disse - pontualíssima é a natureza, faz hoje exatamente um ano que os paus d'arcos floriram como estão florindo agora. Olhei para o céu e ele estava azul-cobalto manchado do amarelo de cádmio claro das flores dos ipês. Confesso que os rasgos de amarelos sobre azul das minhas pinturas recentes têm qualquer coisa a ver com aquele momento da cidade das acácias de nossa adolescência.

Um dia ele me telefonou perguntando sobre pentimento, um termo técnico de pintura que indica a revelação de um esboço, uma cor ou um testemunho de imagem que aparece, com o tempo e a oxidação da tinta, por baixo da camada de pintura definitiva. Os pentimentos são comuns na pintura antiga, quando os tecidos das telas eram materiais preciosos e os artistas não podiam simplesmente abandonar a tela quando desistiam da imagem que estavam pintando, simplesmente pintavam outra coisa por cima. Hoje se usa o pentimento como linguagem. A transparência de cores sobre cores, traços e figuras de criações anteriores, memórias de outros sonhos ou poemas, são como pentimentos, lembranças semiocultas que aparecem nas entrelinhas do poema, nas sobre-camadas das tintas, nos entre textos das narrativas. O livro de Otávio Sitônio é recheado de pentimentos, de pedaços de memórias de suas várias visões do mundo, seus amores, amizades e aventuras que afloram através do tecido da palavra como testemunhos de importantes, mas não definitivos momentos poéticos. Como numa pintura onde fragmentos de outros quadros se integram numa só composição, esses pentimentos contidos no livro de Otávio são partes de outros sentimentos convivendo nos poemas.

Caminhos de Toboso é também um livro pictórico. A exaltação da imagem é tema presente na homenagem que faz a artistas plásticos como o fotógrafo Paulo Klein, a pintora Celene Sitônio o escultor Breno Mattos, e ainda nos temas como a natureza morta com frutas, com peixes e com aves. Mas é um livro pictórico principalmente pela descrição imagística dos temas que aborda, pela sensibilidade de uma alma sertaneja vivendo na borda do mar e refletindo sobre as diferenças destes dois mundos.

Toda essa gente de paraibanos de 50 anos está ligada às lutas políticas brabas como as Ligas Camponesas e os anos 60 de chumbo, ao rock rural e ao rock-repente, ao desenvolvimento da comunicação e da publicidade como profissão, ao advento da modernidade na arte, conhece ou conviveu alguma vez na vida com Otávio Sitônio. Seu livro nos dá um repertório de personagens fundamentais na preparação da cultura como se conhece hoje na Paraíba. Entre tantas outras pessoas ele se refere a Vanildo Brito, Raymundo Asfora, Figueiredo Agra, Luiz Augusto Crispim, Jomar Souto, Zezito Cabral, Sérgio Castro Pinto, Wirgínius da Gama e Mello, Germana Correia Lima e Beatriz. Não são exatamente os medalhões acadêmicos que se tornam temas de teses e comentários universitários, mas são alguns dos criadores da maneira atual de pensar nossa cultura, cidadãos que, como Otávio Sitônio, precisam ter suas obras tornadas públicas para a orientação e a formação de um público mais atento à arte como expressão da vida.

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